Todo nadador de águas abertas já ouviu falar da lendária travessia do Canal da Mancha. Além de ser uma das travessias mais difíceis do mundo, é uma das mais cobiçadas pelos apaixonados por águas abertas.

Em 2011 quatro nadadoras brasileiras tentarão vencer este desafio, mas de uma maneira diferente: elas irão atravessar da Inglaterra à França e voltar em revezamento, algo nunca feito antes por uma equipe de apenas quatro mulheres...


novembro 09, 2011

PEDRAS FURADAS

Nessa manhã fui novamente à praia, estava um vento forte que lembrava os dias de treino com mar agitado. Eu esperava nadar aqui, mas confesso que não tive vontade, pois está muito frio. A água está 14 graus, como pegamos, mas o frio fora é de cortar. Fui caminhar e fiquei procurando as pedras furadas que colecionei quando viemos fazer a travessia.


Engraçado que quando voltei e dei de presente para alguns amigos as pedrinhas furadas, todos me perguntavam se eu havia as furado para passar o cordão e eu sempre explicava que não... na verdade a ação de outras pedras menores sobre elas constantemente é o que as perfura. Imagino que são necessários anos e anos para que uma pedra acabe perfurada pelas menores, por isso elas não são muito fáceis de se encontrar.

De repente percebi que aquelas pedras na praia são exatamente como as pessoas... Normalmente encontramos pedras de cores, tamanhos e formas diferentes... olhamos para elas e as achamos comuns, elas muitas vezes passam desapercebidas pois se misturam entre todas as outras. Nem por isso deixam de ter a sua função e de serem especiais, A ação do tempo as modifica e elas vão tomando formatos diferentes, se adaptando às condições às quais são expostas. Existem as pedras que parecem perfeitas... bem redondas e lisas, de cores uniformes... muitas vezes chamam a atenção pela sua beleza e perfeição, mas por serem tão perfeitas, não se encaixam bem umas com as outras, deixando muitos espaços entre elas. Uma pedra perfeita sempre precisa de outra não perfeita para lhe dar equilíbrio. Há também aquelas pedras de formas totalmente indescritíveis e sinuosas, que se encaixam em qualquer lugar e por serem assim, permitem que todas as pedras se encaixem melhor, pois preenchem os espaços que vão se formando... tem gente que as acha esquisitas, mas a verdade é que elas ajudam o mundo a ser melhor, pois elas dão uniformidade e equilíbrio à ele. Por fim, aqui descobri as pedras furadas. Não sei se é algo que encontramos em qualquer lugar no mundo, mas aqui elas existem. São de todos os tamanhos, formas e cores, umas perfeitas e outras não, mas todas elas foram sofrendo a ação de outras pequenas pedras (tanto que algumas ainda têm a pedrinha dentro do buraco...), se modificando e acabaram por serem perfuradas.

Acho que somos moldados, como as pedras, pela vida e pelas pessoas que passam por ela. Tudo o que passamos desde nosso primeiro dia de vida nos fez chegar ao que somos hoje... nossa criação, a educação que nossos pais nos deram, as influências de amigos, professores, treinadores... A vida tem teoricamente uma sequência lógica, mas os fatos ao redor dela fazem com que cada um tenha as suas próprias experiências e por isso se diferencie, no decorrer do tempo, uns dos outros.

Hoje me sinto como uma dessas pedras furadas... moldada pelos fatos e pelas pessoas... e a beleza da vida é que a cada dia encontro mais pedras como eu... Acho que toda essa história do Canal me fez entender muita coisa na minha vida... aliás, jamais imaginei que isso fosse me modificar tanto. Voltar para cá foi maravilhoso para poder fechar esse ciclo e talvez começar um novo... Nada jamais poderá tirar de mim essas experiências e lembranças pois elas hoje fazem parte do que sou. Um buraco de uma pedra não se fecha, apenas se modifica... assim somos nós... enriquecemos a cada nova experiência que vivemos e a cada nova pessoa que encontramos... mudamos constantemente e temos que ter certeza que, sendo pedras perfeitas ou furadas, somos únicos em nossa forma e tamanho... exatamente do jeito que deveríamos ser.



novembro 06, 2011

ORGULHO SIM...


Entrei no hall do lugar onde o evento iria acontecer e vi várias pessoas bem vestidas... a verdade é que ninguém sabe como se vestir, tinha de jeans até smoking!!! Foi ótimo ter ido no meio termo. Dei uma voltinha pelo lugar, vi uns painéis com a história do Canal e logo uma senhorinha veio conversar. “Você é nadadora?”, “Sim, e você?”, “Eu também!!”. E logo me vi batendo papo com uma mulher que em 1961 atravessou o Canal da Mancha... se hoje as pessoas já acham um feito, imaginem naquela época... Uma figura... Me disse: “Meu filho adora esportes radicais, não sei de onde ele tirou isso...” e eu logo rebati: “Não sabe?? Você atravessou o Canal há 50 anos e não sabe de onde seu filho tirou a idéia de ser radical???”... demos boas risadas...

Me sentei em uma mesa com um casal Sul Africano (ele havia feito solo) e uma família Indiana, a filha de 18 anos havia feito em revezamento, mas no caso dela, ela entrou num revezamento que não conhecia ninguém... achei meio estranho, pois parte de toda a diversão de fazer o reveza é estar em equipe, compartilhar o momento com pessoas que vc gosta e confia. Mas enfim, cada um com seus grandes feitos, ficamos todos trocando nossas experiências...

Depois do jantar, britanicamente levantaram um brinde a todos e iniciaram os discursos. No primeiro deles, um membro da associação disse: “Esse foi um ano muito especial! Tivemos várias travessias com sucesso e pela primeira vez na história do Canal uma equipe de quatro mulheres fez a travessia ida e volta, não somente estabelecendo o recorde inaugural, mas batendo os dois recordes da travessia. Foi um feito único.” E todos aplaudiram... e eu fiquei lá, olhando aquilo e pensando dentro de mim: “Somos nós! Somos nós!”... foi a primeira vez na noite que me senti realmente orgulhosa...

A premiação foi rápida, sem discursos... eles nos deram 2 troféus: pelo melhor revezamento “não standard” (standard tem 6 pessoas) e pelo recorde. Os prêmios de melhor revezamento do ano feminino e geral deram a outras equipes “standard”, o que não achei justo, já que eles fizeram em 2 horas a mais que nós, com 2 pessoas a mais... Mas enfim... devem ser as regras deles... Subir lá e cumprimentas Michael Reed, o presidente da Associação, e ouvir dele que ele estava muito orgulhoso do nosso feito e muito feliz com a nossa presença foi também especial. Ele é um velhinho simpático que sustenta um colar de medalhas... Nesse momento o “Rei do Canal”, que fez a travessia por 33 vezes, parou em minha frente e começou a cantarolar: “Brasil, meu Brasil brasileiro...”... e rimos... me senti muito orgulhosa novamente... eles me deram os parabéns e comemoraram comigo.

Os troféus são somente para ter o gostinho, são devolvidos no fim da festa e ficamos com os certificados e duas plaquinhas comemorativas. Lógico que fiquei tirando fotos com nossos troféus, pois essas são “para a eternidade”... E fui tirar fotos com Andy, nosso Piloto, e Steve, nosso observador, que, por sinal, ganhou o melhor observador do ano. Andy me disse: “Você sabe que todos os troféus deveriam ser de vocês, não?”, e eu respondi: “Sim Andy, mas nosso troféu é muito mais que isso... entende?”...

Bem, depois conversei com muita gente e especialmente com Javier, o cara que fez a melhor travessia masculina do ano. Ele fez várias tentativas frustradas, mas jamais desistiu daquilo que ele acreditava, por essa persistência estava lá comemorando o feito dele. Conversar com todas estas pessoas me fez entender o quanto tudo isso é especial e único e o quanto eu devo me orgulhar. Quando o Igor me perguntou se eu ia e eu disse que sim, pois achava importante, ele disse que eu devia mesmo ir... hoje entendo porque. Tenho uma amiga, a Cris, que sempre me apresenta para as pessoas falando: “Esta é a Giu, minha amiga que atravessou o canal da mancha IDA E VOLTA”... e eu sempre fico envergonhada e pergunto: “Porque vc sempre fala isso??” e ela diz que se orgulha e que eu também deveria me orgulhar. Acho que depois de estar aqui novamente e viver tudo isso nessa noite, acabei por me convencer que foi sim um grande feito meu e da minha equipe... e que me orgulhar disso não significa “me achar”, mas significa sim valorizar aquilo que nós, a Balkis, nossa família e amigos acreditamos que era possível... e que conseguimos conquistar com honra e mérito... Então obtive a resposta para a pergunta que eu não queria ter pra sempre no coração: “E + SE” eu não tivesse vindo, jamais entenderia o verdadeiro sentido de ter orgulho do que fizemos.


novembro 05, 2011

"E" + "SE"

Adoro como as coisas são tranquilas e simples por aqui. Ontem cheguei ao aeroporto , peguei o metrô e fui para a casa da minha amiga Biu (obrigada querida, pela noite divertida em família!!!). A impressão que tenho é que se chega a qualquer lugar desta cidade por meio de trens e metrôs. Não existe preocupação com segurança, andar na rua com malas é a coisa mais natural do mundo! Cheguei muito perto da casa dela e caminhei até lá, passando por cima do Rio Tâmisa. Já pensei: uma nadadinha nesse rio deve ser legal.... e pensar que ele um dia foi pior do que o Tietê em termos de poluição... hoje é um rio limpo e bonito... dá realmente vontade de dar um pulinho!!


Outra coisa que adoro é que por aqui é comum na esquina ter uma mega loja de bikes (claro que fui!!), um shopping com lojinhas ótimas (GAP!! Ok – adoro!) e farmácias com todas aquelas coisinhas que as farmácias do Brasil não têm (com preços ótimos, mesmo em Libras!!)... enfim, só um passeio pela vizinhança já me alegra!!

Hoje já estou indo para Dover. Como disse antes, escolhi ficar lá pois é onde será o jantar nesta noite. Aliás, confesso que estou meio apreensiva com o traje do jantar... O Igor me disse: “homens de terno e mulheres com vestidos tipo casamento...”... o problema é que nos lembramos que a última vez que ele esteve nesta premiação foi em 1997... posso imaginar o que nós usávamos em casamentos há 13 anos atrás... então trouxe algo nem simples e nem “casamento”... se errar, acho que será por pouco.... rsrs... conto amanhã se passei carão!!

Outra coisa que está me deixando meio nervosa é a possibilidade de ter que fazer um discurso... obviamente em inglês! UFF!! Ainda não pensei muito nele, mas devo ter que escrever uma sequência para que eu não esqueça nada (nem ninguém)... tentarei filmar, caso aconteça...

Viajar sozinha é até divertido, mas a verdade é que adoraria ter minha equipe comigo... Vou passando nos lugares e lembro de tantas risadas que demos aqui juntos. Estávamos em 7 da outra vez, tudo era motivo de piada, principalmente com a Pri do lado (Pri, suas piadas e reclamações da comida fazem falta sim...). Acho que esse seria o momento perfeito de virmos juntos e vivermos um pouquinho daquilo que conquistamos... tenho a impressão que na premiação me sentirei como a Marta diz que se sentiu ao chegar na França sozinha: “OPA! Quem eu vou abraçar???”!! Bem, acho que será uma noite, no mínimo, interessante.

Ontem me peguei pensando se eu sou uma louca de despencar do Brasil até a Inglaterra para ir numa festa... e se de repente a festa for ruim??? Mas pensando nisso, cheguei à conclusão que mesmo que a festa não seja a maior diversão do mundo, pelo menos eu estive aqui... eu vim, eu vivi isso e nunca me pegarei pensando “e se”... Existe um filme que fala que “e” e “se” são duas palavras que nada significam separadas, mas que juntas têm um significado enorme... é a diferença entre você viver algo, mesmo correndo riscos, mesmo se vulnerabilizando ou tendo no coração a dúvida se deveria fazer aquilo; ou passar o resto da vida imaginando como teria sido se tivesse feito aquilo... E, sinceramente, acho que essa é uma das piores dúvidas da vida.

E hoje me sinto realmente feliz de ter vindo, agradeço às minhas irmãs, que me ajudaram a estar aqui, pois sei que jamais me pegarei pensando: “Como teria sido se eu tivesse ido na premiação?? Teria sido emocionante estar lá? Eu teria me sentido orgulhosa?”... Não... essas dúvidas eu jamais terei e, mais do que isso, tenho a certeza que serão sensações que farão parte da minha vida para sempre!!
novembro 02, 2011

MAIS CAPÍTULOS PARA NOSSA HISTÓRIA...

Há quanto tempo que não escrevo um post...
Fiquei pensando no porque disso e muitas coisas me vieram à cabeça.
Logo após a chegada ao Brasil foi uma loucura... queria ver todas as pessoas que haviam me acompanhado na jornada do projeto, compartilhar a experiência, contar as histórias “ao vivo”... Foi muito emocionante reencontrar as pessoas. Emocionante voltar à academia e ter um café da manhã me esperando, todos querendo saber como tinha sido a conquista. O mesmo no meu trabalho... Foi gratificante poder contar para pessoas queridas e ver lágrimas nos olhos de alegria e orgulho, pois elas sabiam tudo o que havia se passado para chegar ali e, portanto, o que significava aquela conquista. Enfim, a volta foi intensa!!!

Em seguida veio o empenho em tentar aparecer na mídia, jornais, TV, rádio... conseguimos algumas coisas sim, mas junto com isso veio também a frustração e a certeza de que em nosso país, pessoas como nós, que vão lá fora e realizam o que realizamos, não têm o menor valor. Pessoalmente tanto faz sair na mídia... o que conquistamos é nosso e estará em nosso coração e nossas lembranças para a vida toda. Mas agora acho que entendo um pouco melhor porque as empresas no Brasil não investem tanto em esporte: porque no final elas não têm o retorno esperado. Sinto essa frustração pela Balkis... sei que eles são muito orgulhosos do que realizamos e de terem nos apoiado, mas ao mesmo tempo eu gostaria que tivessem tido muito mais visibilidade... De qualquer modo agradeço aos meios de comunicação que nos deram espaço, que quiseram contar nossa história...

Por fim veio a vida... sei que já postei aqui uma vez a frase de John Lennon que diz: “Life’s what happen when we’re busy making other plans.” – “A vida é o que acontece quando estamos ocupados fazendo planos”... e a vida me pegou mesmo. Problemas pessoais, viagem a trabalho... Tantas coisas que aconteceram nos últimos meses que acabaram por me afastar das provas de águas abertas. Alguns amigos de travessia me cobraram porque não apareço mais, mas essa parte ficou para o ano que vem. Minha última e única prova do segundo semestre é o Pan Master. Tenho treinado bem, com muita vontade... e gostaria muito de fazer uma boa prova pois será minha “despedida” esportiva de 2011. Mas se por acaso não fizer, sei que esse foi um ano esportivamente iluminado, do qual lembrarei por toda minha vida, por ter conquistado o Canal!!

E então isso me leva ao porque de estar voltando a escrever depois de tanto tempo... e à minha segunda grande escolha do segundo semestre: participar da festa de premiação da Associação do Canal da Mancha, que acontecerá em Dover no próximo sábado. Amanhã embarco para Londres e depois pego o trem para Dover. Escolhi ficar lá e não em Folkestone, onde ficamos em Junho, pois é lá a festa. E o porque de eu querer tanto ir é porque existem coisas na vida que não acontecem duas vezes... e existem conquistas que devem ser celebradas. Acredito que o que fizemos foi único para nós, para o esporte, para as pessoas que nos cercam... acredito que fomos e somos exemplos de que quando se acredita nos sonhos, eles podem ser realizados... acredito que somos motivo de orgulho para nossa família e amigos... e acredito que por tudo isso eu tenha que ir até lá.

Estou na expectativa... e escrever sobre cada “capítulo” dessa experiência será uma boa forma de compartilhar o fechamento desse grande projeto!! Até o próximo capítulo então!!
agosto 19, 2011

ESTAMOS DE VOLTA...



Praticamente dois meses depois que deixei minha última publicação aqui, estou eu aqui de novo. A última publicação nossa, foi no dia 29 de junho, quando a Giu descreveu, por sinal muito bem, como foi o dia da nossa travessia.
Penso que talvez vocês estivessem sentindo a nossa falta, mas também compreendam que precisávamos descansar, encontrar muita gente para contar como foi tudo, e arrumar muita coisa, que ficou para trás quando o foco era a travessia do Canal.
Será que vocês têm curiosidade em saber se ainda nadamos ou se ficamos traumatizadas após tanta água?? Ih, no meu caso, não teve trauma não. Logo que voltei para o Brasil estava com muita vontade de pular na piscina onde treino. O Igor tinha dado duas semanas off e ainda tinha dito que era bom ficar sem treinar. Que era a hora de fazer outras atividades, mas nadar, não. Eu consegui ficar 1 semana sem treinar. Na outra já voltei. Tudo bem que além dos títulos, ganhei um dedinho do pé quebrado, e isso limitava as atividades que conseguia fazer. Como correr não dava, fui nadar, com o dedinho imobilizado.
A primeira vez ao entrar na piscina foi muito estranha. Eu estava com expectativa, querendo saber como seria a sensação de entrar em uma água “quente” (mais ou menos 26,5°C onde eu treino). Talvez devido a essa expectativa, ao entrar na água o que eu mais estranhei foi que a água estava parada, e era muito límpida. Estava muito fácil deslizar nessa água, além, lógico, que nadar sem estar com todos os músculos contraídos de frio é maravilhoso. Acredito que eu tenha feito pelo menos 25 m com um sorriso no rosto.
Depois desse dia não parei mais de nadar. Mas agora a exigência é outra. O dia que não dá para ir, eu falto. Os finais de semana são de folga. E o mais estranho, o treino leva no máximo 1 hora e meia.
Desde quando entrei no Projeto sabia que a travessia do Canal seria um divisor de águas em minha vida. Foram meses de muito treinamento, dedicação, comprometimento total e foco nesse Projeto.
A viagem para a Inglaterra para a travessia foi muito especial. Foram dias e momentos de aprendizados, lições que eu levarei para o resto da minha vida.
Na maioria do tempo éramos sete pessoas que conviviam quase que tempo integral só pensando na travessia do Canal. Passamos nove dias antes do dia da travessia. E o que fazíamos não era muito mais do que dormir, comer e treinar. Estávamos sob uma forte pressão e ansiedade. No entanto, foram dias maravilhosos. Nos divertíamos muito e acho que devido à pressão, riamos de muitas bobagens. Aprendemos a conhecer os outros melhor, a enxergar um lado que não conhecíamos, e até a compreender melhor certas atitudes e comportamento dos outros. Éramos uma família unida e feliz!
Cada dia tinha uma novidade e um aprendizado. O primeiro contato com a água do Canal. Como seria essa água? Imaginava que fria. Na primeira vez que eu coloquei o pé: “nossa, bem mais fria do que eu podia imaginar”! Na hora passou pela minha cabeça: “e agora, como farei para conseguir entrar e nadar nessa água”? Ao mesmo tempo: “não posso demonstrar que estou horrorizada”. Melhor solução: “Vai ter que entrar sem pensar, e nadar”. Quando te disserem que você se adapta ao frio, acredite, pois é verdade. O frio que no primeiro dia parece insuportável vai se tornando cada vez mais tolerável, e tem hora que você nem se lembra mais dele. Talvez quando você descubra que tem algo pior do que o frio, o vento no Canal. O mar fica agitado, cheio de ondas que te jogam de cima para baixo em frações de segundo. Parece que te bate. Esquece a natação e a sensação que se tem é que você está tentando sobreviver em alto mar. Isso quando não parece que você está “enrolada” no meio da onda. Ou seja, você faz força, força e parece que não sai do lugar. E o pior é que, se de dia o mar está uma piscina, à tarde já pode estar revolto. Conclusão: o Canal é imprevisível.
Um dia crítico na nossa estadia esperando o dia da travessia foi o dia em que o vento estava a 60 km/h e não pudemos treinar. Um dia tenso, de silêncio. O Canal mostrou que ele é mais forte do que a gente, que se ele não deixasse, não poderíamos fazer a travessia. Hora de muita concentração, de usar a fé e orar!
Em compensação, os dias seguintes, em que conseguimos treinar, o fizemos com mais vontade, com mais garra, como se fosse por reconhecimento. E as adversidades até estavam mais amenas.
O dia da prova foi um presente. Um dia lindo, sem vento e ensolarado. Até o fato de termos saído mais cedo do que o previsto foi bom. Assim, não tivemos tempo para curtir a ansiedade. Tivemos que ficar concentrados na organização das coisas para levar, e partir logo. A natação na prova não foi o mais difícil. Tudo bem que desde a minha segunda queda nadei em um ritmo mais forte do que eu nadaria se dependesse só de mim. Na hora compreendi o porquê ter treinado tanto, acredito que igual como se eu fosse fazer a travessia solo. Fiquei aliviada pois não tive problema algum com uma das minhas maiores preocupações: sentir-se enjoada no barco. Uma médica da Escola Paulista me receitou um remédio, Meclin, e eu tomei-o ao longo do dia e me senti 100% bem. Fiquei bem disposta e não tive enjôo algum. Santo Meclin!
Duas grandes dificuldades para mim na prova: o frio e nadar à noite. Enquanto estava sol o frio não incomodava tanto. O sol trás uma energia boa, além de ajudar muito aquecer enquanto estávamos no barco. Quando o sol foi embora e a escuridão dominou, foi a hora em que foi possível sentir, literalmente na pele, como a cabeça comanda nosso corpo. Hora em que tive que bloquear todas as sensações e me manter concentrada e focada no objetivo final. Momento em que foi imprescindível a presença dos técnicos de pé olhando para mim na borda do barco. Era o que me confortava e que me fazia seguir.
Os minutos mais difíceis eram aqueles em que eu me sentava no barco aguardando a hora do juiz dizer para eu pular. Especialmente na hora que me sentei lá e estava noite, eu de maiô, tremendo, olhando para aquele mar em que não se enxergava nada além da luzinha na touca da Pri piscando. Eu sabia o frio que me esperava na água. Meu corpo dizia que não agüentaria o frio. Mas minha cabeça dizia que eu precisava suportar. Nessa hora minha respiração ficou ofegante e eu pedia para uma força maior para que eu conseguisse pular. Nesta hora, acredito que o Ricardo percebeu o meu desespero e me falou assim: “Lu, lembre do seu post “Acreditar”, acredite que você conseguirá”. Aquelas palavras parecem que me tranqüilizaram, e eu realmente consegui.
As maiores lições da prova foram o aprendizado de um real trabalho em equipe e o autoconhecimento. No que se refere ao trabalho em equipe, durante grande parte do tempo, éramos seis pessoas (as quatro nadadoras mais os dois técnicos) trabalhando por um objetivo comum. Como sempre, cada um tem uma personalidade, particularidades, qualidades e defeitos. Eu e as outras nadadoras temos nível técnico muito semelhante. No entanto, no projeto, ora uma se sobressaía em algum quesito, hora outra em outro. Isso é natural. Por alguns instantes foi difícil enxergar a unidade dessa equipe. No entanto, no dia da prova, tudo ficou mais do que explícito: o porquê dessas seis pessoas. Cada um, com a sua particularidade, tinha o seu papel. O papel de um complementava o do outro. E desta maneira, todos juntos completamos um todo. E este todo significou a realização do objetivo comum, a conquista do Canal com sucesso! Sei que a escolha da seqüência das nadadoras, feita pelos técnicos, não foi por acaso. Mas parece que até isso foi perfeito, que cada uma estava nadando no momento exato em que era necessário.
Foi importante conhecer melhor os meus limites, entender o poder que a cabeça exerce sobre o meu corpo. E, mesmo sob pressão, conseguir administrar melhor as emoções, as sensações. Estava lá, longe da família e de muitas pessoas queridas. Se por um lado eu queria muito realizar este sonho, eu sabia que havia um certo risco. Sabia que todas as pessoas estavam torcendo muito, mas ao mesmo tempo estavam apreensivas, com certo medo. A sensação da conquista de um sonho antigo, no qual me dediquei muito, foi incrível. É uma sensação de realização completa. Na hora que pisei na pedra mais alta, ergui os braços, e depois de alguns intermináveis minutos, ou segundos, não sei ao certo, para mim pareceram horas, rs, e a buzina tocou, compreendi que todo esforço e mesmo toda a dor valeram a pena. Que eu passaria por tudo isso de novo para sentir o que eu estava sentindo. Pensei que eu fosse me desmoronar de chorar, mas estava em transe, tentando absorver o que tinha acontecido. As lágrimas só vieram no hotel, após ter tomado banho e café, quando deitei a cabeça no travesseiro para tentar, finalmente dormir. Nesta hora, as lágrimas não paravam de escorrer e resolvi levantar para ler e-mails e os comentários no facebook. Queria ligar para casa, mas ainda era muito cedo no Brasil...
Pessoal, tudo foi incrível!! Beijos,
Lu

AS ATLETAS

Estas são as quatro atletas do projeto

GIULIANA P V BRAGA

GIULIANA P V BRAGA
Atleta de 37 anos, executiva do varejo esportivo, começou há três anos nas maratonas aquáticas. Entre suas conquistas se destacam: Campeã por categoria da Travessia 14 Bis Santos-Bertioga (25 km) em 2009, Terceiro Lugar por categoria da Travessia 14 Bis Santos-Bertioga (25 km) em 2008, Campeã por categoria em 2 das 3 etapas da Tríade Aquática Speedo em 2009, além de ser Top 3 nas provas que participou do Campeonato Paulista de Maratonas Aquáticas entre 2008 e 2010.

PRISCILA C SANTOS

PRISCILA C SANTOS
Atleta de 30 anos, advogada, tem experiência internacional em maratonas aquáticas e vários títulos na bagagem: foi Campeã do Hawaiian International Open Water Swimming Championship 2000 (3 e 5 km), Hexa-Campeã por categoria da Travessia 14 Bis Santos-Bertioga (25 km), Hexa-Campeã Paulista de Maratonas por Categoria, Campeã da Travessia Renata Agondi por categoria (10 km) e 6º Lugar na Travessia Internacional Ilha bela-Caraguatatuba (25 km).

LUCIANA AKISSUE

LUCIANA AKISSUE
Atleta de 33 anos, empresária do segmento de suplementos alimentares, participa desde 2002 de provas de piscinas e maratonas aquáticas. Dentre os principais títulos, estão: 3º Lugar por Categoria Travessia dos Fortes 2010 (3,5 km), 1º Lugar por Categoria Travessia 14 Bis Santos-Bertioga 2009 (25 km), 1º Lugar por Categoria Travessia 14 Bis Santos-Bertioga 2008, 1º Lugar por Categoria Travessia dos Fortes 2009, Campeã Paulista de Maratona Aquática por Categoria 2008.

MARTA MITSUI IZO

MARTA MITSUI IZO
Atleta de 40 anos, treinadora de Natação e Personal Trainer, foi a 5ª mulher brasileira a atravessar o Canal da Mancha em agosto de 2006. Entre vários títulos de travessias, foi quatro vezes vice-campeã por categoria da Travessia 14Bis, que vai de Santos a Bertioga (25 km) e está sempre entre as Top 3 das provas do Campeonato Paulista de Maratonas Aquáticas.